Lembro nitidamente aquele triste funcionário que autenticava os meus documentos numa sala da Junta de Galiza para uma acreditação qualquer. Lembro como se deteve surpreendido ao ler um documento com um cabeçalho no que destacava a palavra DECLARAÇÃO em grandes letras.
Começou a remexer entre o resto de papeis, olhou para mim e perguntou pola tradução jurada. Durante um espaço de tempo indeterminado estivem tentando interpretar a sua pergunta. Esse mesmo funcionário acabava de autenticar-me vários certificados portugueses sem exigir-me nenhuma tradução. De súpeto, dei-me conta que aquele homem não reparara que os outros certificados estavam escritos na língua de Camões porque provavelmente nenhum sufixo ÃO ferira a sua vista. Deveu portanto pensar que estavam em galego. Diante desta situação, eu tinha duas opções: ou bem confessar-lhe que já autenticara outros documentos portugueses sem exigir nenhuma tradução, ou bem não dizer nada e voltar o dia seguinte com a tradução do documento identificado. Decidi escolher esta segunda opção pois me permitia poupar tempo e dinheiro se finalmente me obrigava a traduzir tudo o que já tinha autenticado. O egoísmo do cidadão cansado de papelada levou-me a desbotar a primeira das opções, que tinha uma compensação moral bem interessante: mostrar a un triste oficial da Xunta que traducir do portugués ao galego é un formalismo administrativo ridículo e absurdo.
Nas últimas semanas, a Associação Galega da Língua está a lançar uma estratégia binormativista para botar abaixo muros linguísticos que levam a situações tão absurdas como a que acabei de descrever. Segundo o manifesto da associação, o binormativismo é a “coexistência, em paridade legal, de dous modelos gráficos para representar a mesma língua”. Um dos modelos baseia-se na norma internacional, conhecida como portuguesa, para grafar o galego, e o outro é a norma local ou do país. Existem outros casos de binormativismo ou cohabitação amigável de duas normas em países próximos, nomeadamente Noruega e Luxemburgo, que podem servir de exemplo para análise e estudo embora as circunstâncias não sejam idênticas às nossas. A essência do binormativismo requer, como nesses dous países, que as duas normas tenham reconhecimento legal. O objextivo é xuntar forzas a prol da lingua galega en vez de seguir divididos en liortas e conflitos académicos sen fin.
Todas e todos concordamos em que uma língua ou fala é muito mais do que uma norma escrita. As línguas podem grafar-se de muitas maneiras, mesmo com diferentes alfabetos. Nada nos impede escrever o galego com alfabeto árabe, cirílico ou devanagari. A grafia, no entanto, permite ligar-nos a outras comunidades que utilizam convenções gráficas similares. Eu escrevo em padrão português porque acredito que as falas portuguesas são variantes da minha língua galega, mas a estratégia binormativista não interfere neste tipo de crenças, pois trata de situar o galego por cima tanto do modelo gráfico escolhido como da filiação filogenética que cada quem decida atribuir à língua. No fundo, o binormativismo deveria conceber-se como uma aplicação natural da Lei Paz-Andrade, aprovada em 2014 por unanimidade no Parlamento da Galiza, para o aproveitamento da língua portuguesa e o fomento dos vínculos com a lusofonia. O conxunto da cidadanía galega devería ter acceso á norma portuguesa na escola, independentemente de considerarmos o portugués unha variante do galego ou unha lingua irmá mais estranxeira.
Todas e todos ganhamos com esta estratégia. Ganham as pessoas que apoiam a normalização do galego e que usam habitualmente a norma local. O conhecimento, mesmo se é apenas passivo, da norma internacional permite reforçar o léxico galego, o uso de estruturas sintáticas como o infinitivo conjugado, e o reconhecimento de muitas expressões populares galegas, quase perdidas nas nossas variedades mui castelhanizadas, que ficam vivas nas falas portuguesas e brasileiras. Mas ganham também as pessoas sem nenhuma motivação em relação à normalização da língua nem à identidade cultural e que, por motivos estritamente profissionais, podem sentir-se motivadas polo pragmatismo que supõe a aprendizagem da norma internacional.
A cohabitação amigável das duas normas gráficas será mais forte quando a população galega, no seu conjunto, tenha um conhecimento passivo, não só da norma local, senão também do modelo internacional. Como xa mencionei, o coñecemento pasivo do portugués virá da aplicación da Lei Paz-Andrade nas escolas. Na miña opinión, reservando algunhas horas anuais ao ensino da lingua e cultura portuguesas nas aulas de lingua galega desde a escola primaria é posíbel formar o estudantado na competencia da lecto-escrita do portugués. É, portanto, fundamental desenvolver a Lei aprovada no Parlamento para aproveitarmos tudo o que o português nos pode dar sendo galegos: comunicar-nos com muita cumplicidade com gente de vários continentes, achegar-nos com facilidade a outras culturas lusófonas, revitalizar as falas populares mais genuinamente galegas, descastelhanizar o léxico e a morfo-sintaxe, blindar o sistema de sete vogais, facilitar os acordos económicos com países lusófonos, alargar o perfil dos que se interessam por normalizar o galego a setores tradicionalmente afastados da praxe linguística e da identidade cultural. E ganhamos tudo isso independentemente de considerarmos o português e o galego variedades diferentes da mesma língua ou duas línguas irmãs mas diferentes. O binormativismo e a Lei Paz-Andrade somam e integram. O rechaço e censura da norma internacional em âmbitos legais, prêmios literários ou no ensino da língua resta e trava o processo normalizador.
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Quero aplicar a miña ciencia á lingua para pintar a face do noso maior ben colectivo: o galego
martes, 18 de decembro de 2018
A estratégia binormativista no processo normalizador do galego
por Paulo Gamallo na Praza Pública:
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