por Isabel Rei, no Sermos Galiza:
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula
disse sim a outra molécula e nasceu a vida.
A hora da estrela, Clarice Lispector (1977)
Quando em 1925 Cecília Payne demonstrou que as estrelas eram compostas principalmente de hidrogénio e que podiam ser classificadas segundo a sua temperatura absoluta, o coletivo de astrónomos deixou de pensar que a composição do Sol era semelhante à da Terra. Os cientistas aceitaram a proposta de Cecília, que mudou o sistema de classificação de estrelas, o único utilizado na atualidade.
A ciência caracteriza-se pela capacidade de assumir novos conceitos. O bom cientista procura não ser escravo dos seus hábitos de pensamento, prefere manter-se aberto às observações e abordar os problemas de diferentes perspetivas. Estas capacidades costumam dar bons resultados, assim que se de quando em vez introduzíssemos um pouco dessa coerência no nosso mundo particular algumas cousas poderiam ir melhor.
O coletivo nada homogéneo de pessoas que apoiam e cultivam diariamente na Galiza o português galego está formado por associações e grupos de língua, ecologismo, informática, artes e artesanias, boletins, jornais e revistas em papel e internet, blogues e páginas web pessoais. Centros sociais. Clubes de leitura. Coletivos feministas. Editoras literárias. Grupos musicais. Uma crescente prática individual, de professorado universitário e não universitário, de alunado. Uma academia de língua. Partidos políticos. Concelhos como o de Corcubiom oferecem a sua página também em português.
Quer dizer, na Galiza diariamente algumas pessoas mantemos nas nossas relações sociais, laborais e tecidos associativos uma prática linguística que, segundo outras pessoas, não é possível manter. Para estas últimas é impossível a aplicação da norma internacional do galego nas aulas. Não pode aplicar-se no emprego, nem serve para a política, nem para reivindicação eficaz de direitos civis. Quem assim opina parece querer dizer-nos que isso do português galego é pura teoria, apesar de que os textos que escrevemos, as reuniões que fazemos, as aulas que damos, os eventos que organizamos, os livros que publicamos, os discos que gravamos e as palavras que dizemos demonstram que a prática está aí, presente e repetindo-se a cada dia.
"Sabemos que o modelo de língua promovido pelo regime espanhol para o galego não é, nem foi nunca, oficial. Ninguém nunca teve obrigação de obedecê-lo. Nem sequer na função pública".
Esta prática não tem nada de extraordinário nem de revolucionário. As que assim nos conduzimos não violamos nenhuma lei do estado. Sabemos que o modelo de língua promovido pelo regime espanhol para o galego não é, nem foi nunca, oficial. Ninguém nunca teve obrigação de obedecê-lo. Nem sequer na função pública. E por isso somos livres para exercer o nosso direito a escolher e usar o modelo de língua que preferimos. Para explicar-nos o fenómeno da prática real do português galego na Galiza só temos duas opções: Ou começamos a acreditar como bons cristãos em milagres do nosso senhor, dado que algumas conseguimos fazer cousas que não é possível fazer, ou abrimos os olhos e assumimos que na Galiza pode haver e há um certo uso normal do português galego, tal como faria um honrado cientista.
O hidrogénio já ardia nas estrelas quando a astronomia ainda não sabia que tal pudesse acontecer. Mas uma vez descoberto e explicado o processo, e vendo que a novidade desborda o conceito anterior, devemos ultrapassar os limites auto-impostos e admitir como possível o que antes achávamos impossível. E, acreditem, abrir os olhos à evidência é tão beneficioso quanto necessário. Pode que a formação do professorado galego reintegracionista ainda não seja suficiente e, por isso, a confiança nas nossas possibilidades seja ainda melhorável. Pode que o número de pessoas que aplicam o português galego nas aulas também seja insuficiente e o processo de formação da estrela mais lento do esperado. Mas a resposta a isso não pode ser o abandono ou o medo. Temos de achar os meios e os argumentos para avançar com o que achamos correto.
Escrever diferente é pensar diferente. A prática diária doutro modelo de língua abre a mente para novas ideias, novos contatos, serve para perder o medo a nos comunicar com pessoas de outros países. Ajuda a alargar as nossas aspirações, a querermos mais e melhor, a saber oferecer o melhor de nós mesmas. Aprender português galego vale para melhorar a nossa compreensão leitora, a capacidade de análise, a mudança de perspetiva, acabamos lendo textos de todo tipo de procedências, de pessoas que podem comunicar-se connosco porque usam a nossa língua. Escrever assim alarga os temas de conversa, serve para reconhecer as armadilhas dos administradores, estes sim, oficiais. Como lhes foi doado confundir-nos com as sucessivas mudanças de leis da educação e de “normativas” gráficas. Como os livros de texto reproduzem os mesmos erros, os mesmos silêncios e os mesmos preconceitos ano após ano, e como ano após ano se degrada a qualidade da língua que transmitimos aos filhos e ao alunado. No mundo lusófono está, ademais, toda essa literatura absolutamente maravilhosa que sempre nos diz mais do que pensamos, cheia de surpresas fascinantes que despertam a imaginação e satisfazem as ânsias leitoras mais exigentes.
Certo que utilizar o português na Galiza é algo mais do que trocar umas letras por outras. Há que aprender a falar a língua, isso que sabiam bastante bem as nossas avós e que hoje perdemos em cada enterro. Ademais há que aprender a escrevê-la, um outro abecedário, um outro sistema de acentuação e saber aplicá-lo. Há que usar muito o dicionário e a gramática para recuperar o tempo perdido. Há que mergulhar no mundo de fala portuguesa até sentir-nos tão cómodas nele quanto ao escutar um forte sotaque andaluz. Esta certeza depende diretamente do conhecimento que temos do mundo lusófono, do número de amigos brasileiros, angolanas, timorenses, da frequência de comunicação com elas e o tipo de eventos em que coincidimos. E ainda não chega, porque a relação deve fazer-se com vontade de identificação, dentro do respeito à diferença, procurando a cumplicidade através da língua, porque a conhecemos e a reconhecemos, porque ademais de ser nossa, a fazemos nossa.
Nesse processo que tod@s deveríamos começar quanto antes, algumas levamos já muitos anos, somos conhecidas nos nossos empregos e entornos precisamente por esta prática civil, pelo discurso aberto e a atitude rebelde face aos ditados administrativos quase sempre abusivos e até ilegais. Aqui estamos, exercendo a escolha soberana deste soberano modelo de língua, trabalhando assim desde há anos e com as famílias opinando e falando sobre o assunto. Sem complexos nem limitações. Preocupando-nos por que a gente saiba. Procurando precisamente que saibam.
Um exemplo desta atividade é a Equipa de Normalização da Língua Galega do compostelano Conservatório Profissional de Música, que durante o passado ano desenvolveu a sua atividade em português galego e este ano vai pelo mesmo caminho. O próximo evento programado terá lugar a quinta-feira 19 de dezembro, às 21h na catedral da cidade, lugar onde se celebrará o Concerto de Natal com motivo do 10.º aniversário do centro, em que o alunado interpretará várias obras para coro e orquestra. A EDLG colabora na elaboração de cartazes e programas de mão, difundindo o português galego entre estudantes, pais, mães e professorado, ademais dos visitantes da catedral e a cidadania compostelana. Mas este é somente um exemplo, há mais professorado galego a levar para a frente a tarefa de divulgação do modelo internacional da língua. Este artigo quer ser uma homenagem a essas pessoas e também uma lente telescópica para as que permanecem ignorantes desta realidade.
O hidrogénio, primeiro elemento da tabela periódica, é o componente mais abundante das estrelas. Ali desencadeia as maiores explosões às mais altas temperaturas do universo. A muita distância, graças à observação e ao uso da razão, a professora Payne desenvolveu um método de classificação estelar tão útil e fiável que não foi superado até agora. A ciência sabe reconhecer quando uma teoria responde à prática observada. Não viria mal aprendermos disso. Vivemos a hora da estrela. A estrela está aí fora. Os olhos para vê-la, no nosso interior.
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