Quero aplicar a miña ciencia á lingua para pintar a face do noso maior ben colectivo: o galego







martes, 8 de outubro de 2013

Quarenta anos na Fábrica da Língua

por Celso Álvarez Cáccamo en Praza Pública:


Desde há aproximadamente 40 anos se vem construindo na Galiza uma versão (oral, escrita e funcional) da língua do país que geralmente está naturalizada já como o “galego oficial” (paralelamente, não esqueçamos, desde há um pouco menos se vem construindo e praticando a versão “reintegracionista”). As explicações de por que “se” optou por esse caminho (e deixo o “se” deliberadamente ambíguo por enquanto), desde e com as instituições, são variadas, mas entram no geral em três grandes blocos de critérios: fidelidade à tradição escrita, fidelidade à fala (e — dizem que portanto — maior aceitação social), e facilidade de uso. Não é objeto deste escrito comentar os critérios anteriores, já muito debatidos. O facto inegável é que, nesta altura, essa versão da língua, que chamarei o “galego-RAG”, está amplamente reconhecida (na medida em que pode está-lo uma língua em processo de extinção), sem que isto empeça que a visão alternativa (e simbólica e politicamente contrária), o “reintegracionismo”, esteja também naturalizada noutros grupos de pessoa possivelmente crescentes.
Mas outro facto inegável é que a construção dominante da língua, e a sua promoção variável, não foi acompanhada da sua recuperação real em muitos campos sociais, além do cultural e, parcialmente, no educativo. Estabelecer a relação entre estes dous factos (relativa aceitação social, e perda de usos) requere duma perspetiva histórica crítica que só agora começa a enxergar-se, mas, sobretudo, de instrumentos sociolinguísticos e históricos que possivelmente escapem a uma pesquisa positivista capaz de “provar” tal relação. E isto é assim porque a história só acontece uma vez e, enquanto acontecia, os mesmos agentes que construíam e promoviam tal língua não se preocupavam de ir avaliando se a construção era fictícia ou se estava socialmente enraizada (além do óbvio: da sua aceitação relativa como “língua”), talvez porque, simplesmente, não era este o seu objetivo. Portanto, a pergunta que me assalta não se refere a isto, mas a outra dimensão da questão: a da lógica da prática intelectual e cultural que caraterizou e carateriza a construção do galego como língua, e às implicações desta lógica para outros objetivos além da língua (felizmente!) que, como coletivo, se possam ter. Por último, está a questão das próprias explicações que, desde dentro do galego-RAG, se possam dar a este fracasso em fazer língua além de literatura e ideologia.
Durante 40 anos, a construção do galego como língua esteve baseada numa duvidosa mas produtiva (documentadamente produtiva, em numerosos processos comparáveis) concepção do papel da intelectualidade, e também num número de miragens ideológicas que faziam tabula rasa dos aspectos estruturais de classe. Erigida em e construída como representante cultural do povo, uma elite que surgia da resistência cultural ao Franquismo pôs o seu saber para a regularização dum instrumento milenário com valores e funções muito diferentes dos que precisava já o Estado Nuevo Español, incluindo o seu regime de Autonomias, essa hábil transformação das “regiones” franquistas. No caminho, as elites dessa língua galega por “normalizar” fizeram o habitual na lógica dos diversos mercados regidos por quadros institucionais: por uma parte, adscrever-se programaticamente ao lugar social ocupado polo “povo” ágrafo, e por outro fragmentar e dividir o próprio campo cultural para poder exercer o seu papel “sacerdotal” (em palavras não minhas, mas do crítico inglês Tony Crowley), e assim aproveitarem melhor os pobres benefícios. Os resultados são conhecidos: a cissão, a exclusão de vontades, e a divisão entre “isolacionistas” e “lusistas” continuam, embora em formas muito alteradas polas novas relações entre mercados, instituições, e poderes públicos (o “neoliberalismo”). E uma outra consequência é também evidente: a tentação de iluminismo polos setores historicamente excluídos, embora estes variados setores reintegracionistas, provavelmente curtidos pola sua in-dependência das instituições, apontem já mais para o papel da sociedade civil e da rizomatização do ativismo linguístico do que na confiança (interesseira ou sincera) na responsabilidade com a língua por parte dum estado nada próprio, mas por definição im-próprio.
Uma explicação habitual para o fracasso (fracasso?) das políticas oficiais sobre a língua, esgrimida desde dentro do “isolacionismo” (e sobretudo desde certos setores dele), era e é que o peso do “españolismo”, personalizado amiúde no monstro do PP, era e é tal que o que se fez com a língua era e é tudo quanto se podia e pode fazer: “pragmatismo”, isto é, possibilismo. O razoamento circular é curioso, porque não explica como, quando se sabia isto, a conivência com instituições que só criavam mais dependência para o campo intelectual (“É possível a autonomia a respeito do Capital”?, pergunta-se John Holloway numa troca epistolar com Michael Hardt, El Viejo Topo 209, 2012) era grande mesmo quando o maltrato real a que o Estado Nuevo Español os (e nos) submetia só compensava aparentemente com a concessão daquilo que Bourdieu chama “capital simbólico”. A realidade é que não se tem detetado no país o interesses de classe do “españolismo” substancialmente diferentes dos do “galeguismo” também de classe. Os parâmetros, acho, são outros, porque tanto as elites “españolistas” (que existem, igual que o seu pavoroso imaginário “España”) quanto as “galeguistas” eram produtos locais, surgidos duma longa história do que António Gil chamaria “famulismo” e Ernesto Vásquez Souza poderia contar talvez melhor que ninguém na nação. Os parâmetros adequados para compreendermos a questão são os dos campos sociais de Pierre Bourdieu, onde se distribui o (pouco) rendimento de exercer(mos) as posições em que fomos caindo, como currantes ou como moscas, na ilusão também interessada da representação de interesses “objetivos”, ou da missão de intelectualidades “orgânicas” (que estão muito longe das teorizadas por Gramsci) em “alianças do mundo do trabalho e da cultura”. E é nesses campos de elite, explica Bourdieu, onde se reproduz homologicamente a lógica da luta de classes, mas eufemizada como “rivalidades” polo controlo do objeto de capital específico, isto é, pola objetivação do saber aparentemente “científico” e “neutral” sobre um ente essencialmente imaterial como é a língua.
Quarenta anos mais tarde, como na Paz franquista, o galego desaparece a um ritmo que só nos pode fazer pensar que, se nos interessar que persista, algo essencial deve mudar no seu tratamento, se esse “nós” (o “nós” de quem pensamos a língua, e não finjo dirigir-me a ninguém mais) quer continuar a exercer, como moscas ou como currantes, o que sabe fazer ou dizer sobre a língua. E, na minha humilde e intuitiva opinião (as leituras só servem para confirmar ou rejeitar o que a intuição pré-racional sabe), a viragem no tratamento da língua só pode ir acompanhada duma desmontagem radical dos princípios e da lógica que sustentavam a perda gradual do idioma durante quarenta anos e o cisma acompanhante, isto é, a categorização e estigmatização social, o circo da língua cujos amadoristas palhaços (nós próprios/as) é melhor que comecemos a esquecer. Refiro-me, frontalmente, à desmercantilização e des-essencialização desta forma de galego-de-seu ou de português-da-Galiza, na sua etiqueta técnica que não deveria provocar mais medo do que “uma pessoa galega muçulmana” (mas por alguma razão é mais rejeitado), nas suas triangulares dimensões (económica, cultural e social) que o Estado Nuevo Español aproveitou, basicamente, para descabeçar a ética coletiva. Podemos continuar a pensar que o horizonte “emergente” do Brasil do BRIC é uma oportunidade luminosa para o galego. Ou podemos pensar que a reclusão nessa glorificação da “tradición” (sic) das letras galegas próprias, desde Pondal até a mais jovem poeta nossa, é a única possibilidade de resistirmos num centro virginal de identidade onde coexistem o gerúndio conjugado, a Terra telúrica e o meigalho. Ou podemos transcender estas visões (no fundo, ambas utilitaristas) e reconhecer que a articulação das identidades com as práticas linguísticas num mundo de estados do Capital atravessados por fictícias redes virtuais de fictícia comunhão virtual (Facebook é a pátria mais pavorosa jamais imaginada) alcançou uma enorme sofisticação na ocultação do que o velho marxismo chama a “contradição fundamental”: a que existe, cada vez mais, entre o capital escravizante e o trabalho escravizado, isto é, a contradição de classe.
Se isto é assim, comecemos por abordar a língua, então, como a entidade tridimensional que é construída polo capital, e que, mais ou menos, propôs há várias décadas Ferruccio Rossi-Landi: matéria com a que se trabalha, instrumento para o trabalho, e produto desse trabalho. E perguntemo-nos, então, de que lado estamos: do lado que nos constrói como força de trabalho da língua (wordforce, chama-a a sociolinguista canadiana Monica Heller), e para o qual só a língua legítima e legitimada vale (“língua oficial” ou “língua boa”, ou polo contrário “língua estrangeira” e portanto inválida), ou do lado que quer superar a construção da atividade (linguística) humana como simples trabalho (responder “É possível a autonomia a respeito do Capital?” acarreta responder “É possível a autonomia a respeito do terror do Trabalho?”). A lealdade à “Norma Vixente” só porque é vigente (isto é, institucionalizada polo próprio estado que fez dela um inútil recurso cultural durante décadas), por utilizar as maiúsculas de Xosé Luís Méndez Ferrín (e na minha crítica toco tanto triste capital simbólico que antecipo reações viscerais, não ideológicas) corre o risco de distorcer o respeitável sentido da palavra “lealdade”, para mostrar a mais profunda contradição. Afinal, seria mais singelo e honesto declarar (embora a reflexão sobre a própria posição no binómio capital-trabalho não seja precisamente caraterística das elites galegas que nos ocupam) que o habitus bourdieuano que nos compõe faz difícil admitir que o sentido duma prática linguística própria não se corresponda com o seu papel real no mercado, como instrumento de sujeição e de divisão. Portanto, des-capitalizar a língua nossa implicaria libertá-la do seu potencial escravizador, sem cair na trapaça da argumentação de que a lógica dos mercados imporia des-capitalizar “primeiro” (não simultaneamente) a língua espanhola: pois, por que priorizarmos as linhas de ação, se está provado que a aberração da escravidão não conhece fronteiras de línguas?

Mas, como fazer isto? Como implodir o sentido mercadorizado do galego quando morre? Para começar, impidamos que essa evidente fenda isolacionismo-lusismo (de elite, mas também “de base”), imposta polo Estado Nuevo Español como tributo à concessão das migalhas dos prémios, das letras e dos cursinhos de CELGA, se converta na desculpa excelente para não botar de vez a vaidade da Verdade científica aonde corresponde: ao campo duma diferente História das Ideias. E, a seguir, em quaisquer circunstância e lugar, esvaziemos os usos linguísticos desse valor mercadorizável e classificador: na fala, no ensino, na literatura, na Rede, nas relações entre pessoas genuinamente resistentes. Porque, por exemplo, não há qualquer valor acrescentado redentor em continuar a utilizar a Norma Vixente sem convencimento: é só uma cómoda inércia, não qualquer renúncia por “pragmatismo” ou fidelidade ao povo; e também não há qualquer façanha em escrever em português na Galiza: é só uma pequena complicação inicial, não um heroísmo. Que cada pessoa compreenda onde está e quer estar, mas que compreenda também que querer perpetuar o Mercado da Língua (sobretudo quando, ideologicamente, se está contra o Capital) não é um jogo inocente. Não sei se tudo isto é muito pedir, mas, polo menos, seria uma amostra de que, como coletivo, ainda nos resta (se este “nós” existe) a potencialidade de resistir e de querer mudar a história que nos mata.

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